“Homem de poucas palavras e grandes obras “ 2 Julho, 2020

Figura marcante. 

Homem de poucas palavras e grandes obras 

Depois de uma 1ª classe na escola da Bandeira, junto ao largo dos Aviadores, fui para a Escola do Torne, para não ter de atravessar a Avenida e por ficar muito mais perto da nossa casa, situada na Rua 14 de Outubro, 732. Mas a mudança só aconteceu após garantias de que não seria obrigado ao ensino religioso da Igreja Lusitana (versão portuguesa da Igreja Anglicana). Acrescentaria que essa casa, que fazia parte de uma construção integrada numa pequena quinta para onde os meus avós maternos resolveram ir morar, vindos do Porto (Avenida Camilo), na altura da 2ª Grande Guerra, foi entretanto demolida para dar lugar a um jardim perto da Câmara de Gaia.  

Finda a escola primária ingressei então no Externato de Gaia, também conhecido por Colégio de Trancoso, onde fiquei até à ida para a Universidade. Uma instituição de ensino, pertença da Diocese do Porto, que convivia no mesmo espaço de recreio, embora a horas diferentes, com um Seminário que tinha dormitório para os padres que o orientavam, sendo alguns deles professores também no Colégio.  

Foi ao entrar para esse Colégio, no antigo 1º ano do liceu, que conheci o Senhor Padre Leão, como director e presença marcante no historial dessa instituição diocesana. A minha ligação (e admiração) em relação à personalidade do Senhor Padre Manuel Valente de Pinho Leão cresceu com o tempo e fortaleceu-se nos últimos anos no Colégio a ponto de terem continuado pela vida fora  até ao seu falecimento em 2010. 

São as razões desta continuada admiração e gratidão pela sua Figura insigne de homem da Igreja e notável empreendedor que irá constituir o foco deste meu modesto testemunho. Mais que as suas qualidades como professor, por certo amplamente reconhecidas em outros testemunhos, quero destacar três dos aspectos que mais me marcaram:  

  1. a largueza e elevação da sua cultura de talha inglesa – austera e humanista – adornada por imensa lucidez e profundo conhecimento da natureza humana.  
  2. a nobre imponência e assumida verticalidade de uma figura tecida por actos solidários, palavra dada e respeito pelos outros. 
  3. a capacidade de gestão e sentido empreendedor que se manifestava no seu espírito criador e na capacidade para assumir riscos.  

Sobre o primeiro ponto, diria que a sua influência acabou por, até certo ponto, dificultar (no bom sentido) o acerto na minha carreira, levando-me, depois de escolher a chamada alínea F, que dava acesso aos cursos de engenharia, a logo a seguir desistir, já depois das provas de acesso à Universidade, para ir para Economia. O que me obrigou a fazer mais três disciplinas, duas com muitíssimo gosto – História e Geografia – por serem dados por uma pessoa que também muito me influenciou: o Senhor Padre Delfim. Opção por num maior equilíbrio entre “letras” e “ciências” que, contudo, não impediu que, terminado o Curso de Economia, me inscrevesse em Filosofia (com opções preferenciais por cadeiras de História), seguindo-se Mestrado e Doutoramento que de novo cruzavam Economia, Filosofia e também preocupações com a Ciência Política. Dificuldades de escolha que bem antes já me tinham levado a hesitar entre ir para conservador de museus ou seguir a carreira académica.  

Uma largueza de horizontes e de interesses que permite a transição para o segundo ponto, acompanhando o Senhor Padre Leão na importância do aprofundamento do conhecimento da natureza humana e no tolerante compromisso com os outros. Aqui a convivência, num mesmo mundo – do rural e do urbano –  e a precoce descoberta de fé distintas, educaram-me tanto para a tolerância religiosa como para a política, aproximando-me de caminhos em que, mais que o imposto, se acentuava a liberdade e a responsabilidade (quiçá também como reacção a uma educação paternal autoritária contraposta a um tom mais liberal dos avós maternos). Valores que no Senhor Padre Leão estavam firmemente arreigados numa verticalidade assumida na inteira integridade entre o que se diz e o que se faz. Traços que tomei como linha orientadora da minha vida. Uma Figura singular que primava por não  separar a Fé da cultura, a Palavra das obras em todas as suas dimensões, desde as culturais e económicas às sociais e assistênciais. Ainda que o labor principal deste homem tão espiritual quanto austero, leal e astuto, estivesse centrado no rigor do ensino e no engrandecimento da educação, tais desideratos eram inseparáveis da sua missão de homem da Igreja: sempre disposto ao sábio aconselhamento e ao apoio sem condicionalismo de que desfrutei ao longo de toda a minha vida. Ouvindo-me tantas vezes no Colégio do Sardão e acompanhando-me  em muitas ocasiões com conselhos sempre avisados e com poucas palavras, como é próprio de um homem económico, diríamos, poupado em todos os sentidos e atento, por isso, ao passado e ao futuro. 

No que respeita ao último ponto destacaria, mais do que as suas capacidades de gestão, o seu espírito empreendedor, sempre atento à sustentabilidade dos seus projectos inovadores. Um empreendedorismo,  como hoje diríamos, que fazia jus ao seu ser Valente. Um bom exemplo disso foi a contratação de uma licenciada, Alice Amélia Borges (que viria a ser minha sogra), para dar a disciplina de Fisíco-Química aos alunos do Colégio (1959-1960) depois de, a seu pedido, por telefone (tinha um filho no 1º ano da primária), ter sido recebida pelo Senhor Padre Leâo. Uma corajosa desconhecida, oriunda de Vinhais (Bragança), que se atreveu (acompanhada por uma filha de cinco anos, Angélica) a solicitar ao Senhor Padre Leão emprego como professora. Perante o pedido, apesar da simpatia e por certo louvor à iniciativa, o que lhe foi oferecido limitou-se à possibilidade de apoiar alunos, via explicações. Mas, feita a prova, logo no ano seguinte foi contratada. Sendo assim a primeira mulher a dar aulas nesse Colégio de rapazes. O caminho escolhido de testar a pessoa num primeiro ano, mostra um traço característico de uma actuação que mistura coragem e sábia prudência, antes de assumir as suas decisões. Um sentido de risco que, bem sabemos, lhe acarretou dissabores no seio de uma instituição como a Igreja que, por ser também humana, não está isenta de invejas e ressentimentos. Traços de carácter e sentido de missão que foram herdados por dois dos seus sobrinhos com quem continuo a desfrutar de grata amizade: Joaquim Azevedo e D. Carlos A. Moreira Azevedo.  

Não gostaria de terminar sem aludir a mais uma dimensão – de tão marcante Figura que, felizmente, tem vindo a granjear amplo e merecido reconhecimento social –  que terá sido fulcral na minha vida. O ter sido capaz de despertar em mim capacidades de iniciativa e de organização. Detectando, explorando e canalizando a minha abrangência de interesses para um leque alargado ou actividades extra-curriculares, como agora se diria. Foi assim que, incentivado pelo senhor Padre Leão, fui assumindo responsabilidades e descobrindo talentos que desconhecia, desde âmbitos culturais aos desportivos:  como o Jornal do Colégio, a organização tanto de provas de karting infantil e como de festas (e decorrentes passeios/viagens) de finalistas no Cine-Teatro de Gaia, sem esquecer o lançamento (1965/66?) de um Cineclube com o Colégio da Bonança, permitindo uma vez por mês sessões comuns às meninas e aos meninos dos dois Colégios. Iniciativa que se deveu também ao arrojo da então Madre Superiora de origem espanhola e à credibilidade do Padre José Vieira Marques que, mais tarde, viria a ser o fundador do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz.  

Por fim, daria relevo à sua imensa capacidade de trabalho –  homem de acção mas também de investigação – a par de um ecumenismo empenhado na valorização do papel da religião num mundo secularizado. Um empenho servido por um alargado leque de vistas, cultivado nas suas inúmeras viagens e apurado na elegância do trato e na curiosidade pelas humanidades, que tantas vezes vivenciamos em festas em nossa casa, apreciando a sua destreza em conversas, com políticos cultos, com Luís Valente de Oliveira e Luís Braga da Cruz, ou com distintos Artistas como o Mestre Guilherme Camarinha ou o Arquitecto Fernando Lanhas, ambos reconhecidamente amigos de um meu tio-avó: o escultor Henrique Moreira. 

José Manuel Moreira
(docente na Faculdade de Economia do Porto e no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, onde terminou carreira como Catedrático de “Ciências Sociais e Políticas”)

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